Entrevista com Ana Cristina Duarte

Ela atende o telefone e logo sai acelerando seu "partomóvel" pela cidade de São Paulo: um bebê está para nascer e a parteira urbana, Ana Cristina Duarte vai acompanhar. Veja como é a vida da profissional que já ajudou centenas de mulheres a acreditarem em sua capacidade de parir e recebeu mais de 200 bebês


Foto: Beatriz Takata

Como você se tornou uma parteira urbana? 
Foi uma trajetória natural. Após o parto da minha filha mais velha, hoje com 15 anos, que foi uma indicação incorreta de cesárea e me deixou muito revoltada, resolvi aprender sobre o assunto. Me tornei doula e comecei um trabalho intenso de ativismo para proteger mulheres contra o sistema obstétrico hospitalar e suas cesáreas desnecessárias e partos desrespeitosos. Acontece que, como doula, eu ajudava a mulher durante a gestação e o trabalho de parto, mas no clímax, ou seja, na hora de pegar o bebê, quem entrava era o médico. Sentia uma vontade tão grande de fazer parte do momento mais especial, de pegar os bebês, que resolvi virar parteira. A filosofia de parteira não combina muito com o modelo hospitalar, ela é baseada no parto como um evento fisiológico e natural que pode perfeitamente acontecer em casa. 

A palavra parteira remete à mulher de antigamente, aquela do campo, o que diferencia a parteira moderna desta figura antiga? 
Antigamente era assim por falta de opção, não era propriamente uma escolha. A mulher urbana que opta pelo parto domiciliar com obstetriz tem um leque de opções, como parto hospitalar e casa de parto, e escolhe chamar a parteira em sua casa. A diferença na atuação da parteira urbana para a parteira tradicional, aquela da roça, é, principalmente, a profissionalização do atendimento. A quantidade que temos de materiais e utensílios, o aumento da segurança no parto (com monitoramento e acompanhamento desde o pré-natal) o uso de respaldos científicos e acesso à evidências, enfim, um parto mais legal em todos os aspectos, inclusive sob o ponto de vista de legislação, e que oferece à mulher tudo que lhe é de direito. Em comum com a parteira tradicional, penso que ambas estão profundamente conectadas com o momento do nascimento. O veículo que liga parteira e mulher é a empatia. Por isso, estabeleço uma forte ligação com a família e tenho sempre uma preocupação em manter o clima tranquilo, o ambiente respeitoso, deixar que tudo aconteça em seu próprio tempo. 

E a mulher que escolhe o parto com parteira de hoje, em comparação com a de décadas atrás, mudou? 
Completamente! Ela escolhe parir com parteira pois já está informada, tomou posse do seu direito e passou a crer em sua capacidade de parir e em seu corpo. Ela sabe que o nascimento acontecerá por ela, através dela. A gestante vai ficando tão tranquila em relação ao processo que não vê mais cabimento em ir para o hospital. Ela quer ser protagonista do parto e escolhe este caminho porque o entende como o melhor meio para vivenciar plenamente a experiência. 

Por que parir é uma experiência importante? Modifica a mulher? Em que sentido? 
A experiência do parto modifica a mulher porque permite que ela chegue a lugares dentro dela nunca antes acessados. Ela conseguirá visitar coisas íntimas do seu ser – chame de alma, mente, espírito, coração, enfim – este encontro representa uma mudança, um avanço para a vida inteira. Quando parimos, ampliamos nosso limite e, isso por si só, já é um avanço, uma expansão de consciência. Parir é uma oportunidade maravilhosa de experimentar uma sensação única, de conhecer melhor seu corpo, sentir sua plena capacidade, e isso faz com que a mulher ganhe confiança para a desafiadora jornada que está iniciando de se tornar mãe. Ou seja, a mulher que pariu - em comparação à mulher que foi operada para ter seu filho - normalmente inicia a maternidade com auto-estima e confiança. Acredito que tornar-se mãe é um processo profundo e quanto mais integralmente a mulher puder vivenciar isso, quanto mais responsável se sentir pelo evento, mais instrumentos adquire para o exercício da maternidade. É interessante mencionar que o benefício não é apenas por ser o parto natural a melhor forma de nascer para o bebê e para a mãe, o ganho é bem mais amplo, podendo ser desde a gostosa sensação de vitória que fica até no pós-parto até um insight poderoso, um enfrentamento de medos ou mesmo uma linda renovação da família. 

Você atende partos normais para mulheres que já tiveram uma cesárea, o chamado VBAC (Vaginal Birth After Cesarean)? No caso delas, o que muda? Qual o ganho que têm? 
Sim, muitos partos são VBAC e, nestes casos, é realmente impressionante o ganho como mulher. Parindo ela se reencontra com seu feminino, se enxerga cem todo seu potencial. Em uma sociedade que valoriza tanto o masculino, em que é preciso ser firme e competitiva no mercado de trabalho, de preferência escondendo a preocupação com a família e a sensibilidade, o parto representa na vida da mulher moderna um momento único em que o encontro com o feminino é permitido e vangloriado! A mulher que pari após uma cesariana experimenta uma transformação absurda, é como um processo de lapidação de diamante. Parindo seu filho lindamente ela vive um momento sublime, sente-se completamente saudável, não está operada e nem de cama, está disposta para exercer plenamente seu papel de mãe e mulher. 


Foto: Beatriz Takata

Como acontece o parto em casa? 
O caminho é percorrido junto, mas quem caminha é a mulher. A rede de proteção dela é a parteira. Estar com a mulher neste momento me permite perceber quando e como ela precisa de apoio, de uma palavra de confiança, de um truque ou outro. Nós, parteiras, temos um repertório que vai ficando cada vez mais rico, pois a cada parto aprendemos uma coisa nova, cada mulher é uma, cada bebê é um. Dois grandes valores que o parto domiciliar permite são intimidade e privacidade. Estamos vivendo na era da exposição, das redes sociais, da conectividade. Parto é desconexão! Para parir é preciso desligar, entrar em total intimidade com a gente mesma. O parto em casa é privativo porque a mulher se sente segura, em um ambiente que domina. Isso é extremamente favorável para um processo fisiológico como o parto. É como aquela pessoa que viaja e o intestino prende. Por que ela só consegue ir ao banheiro em casa? Por que seu corpo não gostou da mudança de ambiente? Por que, com ou sem dificuldades, todos preferem o banheiro de casa? Porque ali estamos à vontade, sem defesas, até mesmo sem trancas! Sentir que é a sua cama, que domina aquele espaço, que os cheiros são conhecidos, os sons, torna tudo mais natural na hora de parir. 

Como a parteira se posiciona neste cenário, dentro da casa, um território íntimo da família? 
Respeito profundamente o que está acontecendo, faço o possível para manter uma postura discreta, uma presença leve. Toco a mulher de forma delicada, cuido para que não se sinta observada e deixo o marido cada vez mais participativo. Aliás, esta é uma curiosidade! Quando me tornei parteira, como contei, queria pegar os bebês! No entanto, como a sabedoria de partos vem me ensinando, pegar o bebê é uma honra que muitas vezes não cabe à parteira e sim à família. Então, hoje, cada vez pego menos bebês! Convido o pai, o filho mais velho ou a própria mulher para segurar seu bebê que está chegando ao mundo. E, por incrível que pareça, observar isso acontecendo – a família recebendo seu novo membro – é ainda mais emocionante do que pegar bebês! 

É tudo planejado no parto em casa? 
É tudo planejado e tudo imprevisível. O que a mulher sonhou ou planejou foi no campo racional, mas, na hora de parir, quem manda é o instinto. Assim, já vivi casos engraçados, como de um pai que montou uma banheira gigantesca, que ocupava toda a sala do pequeno apartamento e exigiu horas de um sistema complexo para encher, com mangueira dando a volta por fora da janela. Mas, era o sonho da mulher! Era, pois, quando finalmente a piscina estava cheia e quentinha, ela entrou, ficou lá dentro uma única contratação e disse, firmemente: odiei isso! E saiu. Pariu na cama, feliz da vida! A mulher vai fazer o que sentir e o que vier. Fazemos uma lista de material, um planejamento, mas damos liberdade total, porque, na hora P, é a natureza que comanda. 

O que você diria à mulher que está grávida e quer parir? 
O caminho natural mais saudável para o bom parto é combater e entender seu medo, olhar para ele, falar com ele e demiti-lo. Fazendo isso, ela chega mais perto de ter um parto bacana, porque o medo é o maior fator de risco de um parto, fica tudo muito mais leve se ela conseguir ir sem esta bagagem para o parto. Percorrer o caminho de busca para parir sem medos, apenas com o medo bom do desconhecido, mas ficando fora da cultura do medo. Isso não é muito fácil pois, no Brasil, há uma grande aura de medo acerca do nascimento. Qualquer mulher conhece histórias trágicas de parto, e o atual sistema obstétrico dissemina riscos inexistentes como o do cordão umbilical enforcar a criança. Enquanto parteira e ativista, tenho o papel de propagar histórias verdadeiras de partos ótimos, cheios de sensações positivas. É o medo que nos leva ao hospital e nos faz crer que o parto é perigoso. Então é nesta crença que devemos fazer a primeira revisão, buscando conhecimento, nos libertando dos medos e nos empoderando do parto. 

A era da informação ajuda nesta busca? A mulher de hoje tem mais liberdade para parir do que você teve há quinze anos? 
Sim, porque as mulheres estão cansadas desta história de medo! Cada célula do nosso corpo é impregnada deste medo. Muitas vezes nem aconteceu nada na gravidez, mas a mulher vai para a faca convencida por uma possibilidade remota do que poderia acontecer um dia. O que é isso? É o medo operando. Este foi o meu caso. O medo que remete ao futuro. Não acreditamos em nosso corpo, não acreditamos que o bebê vai chegar no termo, que dará conta do parto. Mas, sem dúvida, hoje temos mais acesso à informação. Se a gestante consultar o "Dr. Google", por exemplo, e digitar "bebê enrolado no cordão" logo nos primeiros resultados vai descobrir que isso é uma balela, uma mentira, que não existe. Ela vai descobrir que há um grande movimento de resistência ao sistema atual, e que há, como eu, milhares de mulheres, parteiras, doulas, médicos e, sobretudo, mães, trabalhando, divulgando e dando tudo de si para que os partos aconteçam no Brasil de maneira digna, respeitosa, livre de medo e cheios de amor. 


Ana Cristina Duarte, obstetriz e parteira urbana, co-fundadora do Grupo de Apoio à Maternidade Ativa, É co-autora do livro "Parto Normal ou Cesárea? O que toda mulher deve saber (e homem também)".

2 comentários:

  1. Eu tenho tanta segurança na minha Doula, no meu corpo e no meu filho que gostaria que tu aparace ele no momento em que viesse ao mundo. Quem sabe o meu próximo bebê não receba o toque das mãos dessa mulher que escolhi para me guiar neste momento? ...

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  2. Assim tu me enche de amor. De mais amor! Já pensou na possibilidade de VOCÊ aparar o SEU bebê? Ou no marido? Pense nisso. E coloca no teu plano de parto esse desejo, conversa com tua equipe. E eu fico aqui pensando em como seria aparar essas vidinhas... E vamos juntas dividindo presente e futuro.

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